Adoro o brilho da cidade em Dezembro, detesto o trânsito da cidade em Dezembro, adoro a luz da cidade em Dezembro, não gosto de ir ao bar em Dezembro.
Mas acabo sempre por lá ir.
É como picar o ponto, os pés acabam por nos levar lá inevitavelmente, mesmo sabendo que ao saír a maioria das vezes venho deprimido com algumas recordações que trago nos bolsos sobre histórias que ouço. Porque será que as pessoas em Dezembro gostam de contar histórias de pobrezinhos com finais felizes? Não é o final feliz que me arrasa, mas primeiro que cheguem a essa parte, há toda uma miserabilidade que me consome e destrói. Quando finalmente dizem que tudo ficou bem, já eu estou nas últimas e de coração partido sem capacidade para sentir a alegria que devería sentir.
Mais um gin, sff.
Assim, afogo-me mais depressa, pode ser que não sinta nada...
Só a chuva que começou a engrossar. Deixei o chapéu de chuva no carro. E o carro está estacionado a 1km daqui. Se correr, pode ser que passe pelos intervalos da chuva, não era o que se costumava dizer?
Feliz Natal a Todos.
 
O maldito joelho não tem dado descanso a este pobre guerreiro esfalfado e hoje não consegui encavalitar-me no banco ao balcão. Tive que ficar por uma das mesas. Claro que esta nova posição foi motivo de conversa para os habitués que não perderam a oportunidade de vir dar a sua alfinetada, lá do alto do seus banquinhos e de copo erguido.
Mas o curioso da questão, é que o novo poiso trouxe uma renovada perspectiva ao bar. Daqui vê-se a entrada sem ter que se rodar o pescoço; o alcance da vista para a sala é muito mais amplo e nitido do que fazê-lo através do espelho que está à frente do balcão e serve de retrovisor e, naturalmente limita a periferia; além disso, se houver algum par de pernas jeitoso ao balcão, é de facto um privilégio estar sentado à mesa! Agora entendo porque alguns cavalheiros não se abalam deste plano inferior!
Claro que existem inconvenientes.
Perdi a cavaqueira com os meus parceiros, a troca de galhardetes que sempre fazemos e nos arrancam algumas gargalhadas. Nada de mal, tudo inofensivo e que serve para nos atiçar a veia humoristica e a mais das vezes, a imaginação do palavreado sem entrarmos no calão rançoso impróprio para ouvidos femininos, que por lá também os há.
A verdade é que estou manco, um quase inválido.
Está frio, aperto os botões e conto-os à medida que me esforço para não coxear quando lhes aceno desejando bom fim-de-semana.
 
Sentado ao balcão e debruçado sobre o meu copo, consigo ver o fundo do meu passado e regressar à minha infância.
Por vezes, escuto aqui ao meu lado, relatos de homens feitos, de lágrimas nos olhos a contarem sobre o que foram quando eram crianças e o que aspiravam a ser quando adultos. É de partir o coração. Fazem-no como se falassem de uma terceira pessoa, alguém que conheceram e que viajou e nunca mais encontraram, sentindo uma saudade imensa que lhes amargura o coração, uma dor tão forte que se alastra até mim e se instala numa tristeza que trago para casa.
Não me lembro de mim desta forma.
Aliás, não me lembro de mim a ter vontades de coisa alguma, ou sonhos de ser grandioso ou importante. Eu era lá, na minha infância, apenas um miúdo traquinas, muito endiabrado e muito feliz, muito ocupado a jogar à bola, a juntar colecções e a andar de skate, mas nada pensativo ou atirado com o que o futuro me podería ter em sorte ou os desejos que eu tinha para mim.
Era feliz no dia a dia, ou infeliz quando contrariado ou castigado por me comportar indevidamente e apenas isso.
Será que devería ter desejado mais ou faltou-me ambição e agora, ausente dessa tristeza, sofro pela dos outros?
Não sei.
Hoje permito-me outro gin, sinto-me infeliz porque os outros não souberam da simplicidade de se deixarem crescer. Só isso, sem complicações.
Até amanhã.
Chove.
Se calhar são as infâncias viajadas que choram porque se perderam.
 
Dia terrível em que tudo se complica quando me vejo na contigência de passar a maior parte do tempo enclausurado entre quatro paredes. Estou habituado a andar na rua, ver céu e asfalto, gente, muita gente, andar de lá para cá, trânsito, agora isto todo o santo dia enfiado no escritório com apresentações, papéis e o diabo a sete e uns Coreanos que vêm da sede é de deixar os olhos em bico a qualquer um!
Sinto-me enforcado na gravata, falta-me a poluição da rua, confesso a minha pouca concentração.
Há pessoas que têm a capacidade de se evadir dos espaços em que se encontram quando o mal-estar as invadem. Uma imaginação escapatória que as leva para outra dimensão e ainda assim, funcionam na perfeição.
Infelizmente, eu não sou dotado de tais qualidades extraordinárias e onde estou é onde estou, não consigo abster-me da realidade que me morde os calcanhares e por mais que me esforce, não arranjo outro espaço senão o do escritório que é onde me encontro.
Chegam os Coreanos, pequenas vénias, pequenos apertos de mão.
Acho que alguém me disse que eles comem peixe crú e que essa vai ser a ementa do dia.
Afinal enganei-me: A minha imaginação progride a trote para as imagens coloridas de uma gigantesca travessa de peixe e sinto o vómito eminente.
Como me surpreendo!
Agora é um questão de prática e tentar um pasto bem verdinho...
 
A maravilha de um balcão de bar reserva-nos a surpresa da igualdade mas também a nossa intimidade.
Diz-se que os barmen são os melhores confidentes. Mas também se diz o mesmo dos barbeiros.
Nunca pensei muito no assunto, sinceramente, talvez porque não tenha o hábito de contar da minha vida para estranhos. Para o homem que me serve o gin, trocamos algumas anedotas e opiniões sobre politica e futebol. Para o barbeiro, limito-me a pedir que cumpra com a sua actividade profissional, eu pago e saio, nada mais.
Mas no bar, aquilo que deveras aprecio é a paisagem dos que comigo emparceiram ao balcão.
Ficamos todos ao mesmo nível, não há cadeiras de poder, nem barreiras a separar-nos ao que viemos: um simples momento de tranquilidade para desfrutar a nossa bebida.
Não vou só para beber, ou vou também para acompanhar a minha introspecção com um gin, é mais isso, no fundo. Faz-me falta pensar o que fui ao longo do dia, rever-me e analisar como crítico o que fui.
Não sei se isto faz de mim um homem melhor, mas faz de mim um homem tranquilo, pelo menos um homem que não é ladrão dos sonhos dos outros.