Por muito que eu seja passarinho livre, sabe-me bem meter a chave à porta e saber que tenho lá alguém à minha espera.
Mesmo que muitas vezes haja sermão porque chego atrasado, outras esqueço-me de avisar que não vou chegar a horas de jantar e outras porque fui para o bar e perdi a noção do tempo. Esta última é a mais batida. E são todas verdadeiras.
Eu nego todas.
Não faço por mal, mas é instintivo.
Assim que ouço as acusações sai-me imeditamente pela boca fora que não é verdade, mas é-o sempre.
Acho que é uma das razões por que tanto gosto de regressar a casa.
Saber que me conhecem profundamente.
Menina bonita do meu coração.
 
Mês suficiente. Joelho suficiente.
Vou ao bar sem muita convicção, sem muita expectativa mas não me apetece ir já para casa. Na verdade, não sei o que me apetece. Não estou triste nem estou contente.  Vou até lá a ver se encontro o que tenho ou o que não tenho.
Quando chego há uma barulheira infernal, guinchos, gargalhadas.
É uma despedida de solteira, a maioria são estudantes universitárias trajadas a rigor, segundo me disseram fazía parte do combinado para a despida.
Nem sequer tenho lugar ao balcão, fico-me de pé encostado a um canto, armado em palerma a olhar para a festa...
Pergunto ao barmen desde quando fazem eventos. Desde que há crise e que todos precisamos de comer. Toma lá que é para não te armares em esperto, pensei. E voltei para o meu cantinho.
Depois uma das estudantes veio meter-se comigo, puxou-me, um jogo qualquer que eu não percebi por causa do barulho, mas que me pareceu muito perigoso por causa das caras delas, o que me premiou a uma série de assobios e apupos. Voltaram-se para outro, que desgraçado, para não passar a mesma vergonha que eu, lá aceitou. Se ele adivinhasse... Praxaram-no. Dizem elas. A meu ver, fizeram dele o bobo da corte.
Saí de lá a rir.
E um bocadinho tocado, é verdade.
Bebi mais do que esperava. Mas a culpa foi do barulho e da despedida de solteira.
 
Um dia não são dias e mal do joelho por tanto que o tenho castigado, resolvi permitir-me a um luxo e à rótula, uma anestesia.
Bar com ele!
Que se lixe!
Tenho andado numa vida de frade, de casa para o escritório, do escritório para a rua, e desta para casa. E um mau humor... Tudo me chateia, nada me satisfaz, nada me apetece, até mesmo o caminhar me fartou e perdi-lhe o encanto inicial, farto, estou farto, quero a minha vida antiga, e para começar quero o meu gin. Se faz favor, que a educação não perdi.
E a malta?
É cedo, diz o barman. Cedo, como? Não me responde, vai polir a ponta do balcão exactamente do lado oposto ao que estou sentado, não quer conversa, logo hoje que me apetecía a mim...
É assim, há dias que não são dias, são dias cedo de mais.
Engulo de um trago o meu gin tão apetecido. Queima-me, cai-me mal. 
Quando vou a saír o barman chama-me de braço no ar. Que será? Agora que me vou é que quer conversa?
Entrega-me um chapéu de chuva. Esquecido por mim no bengaleiro há vários meses. Logo hoje, um dia radiante de sol e eu a pé. Que seja. Quem mandou que eu viesse cá?!
 
Apercebo-me agora das vantagens de andar a pé pela cidade.
Olha-se, observa-se, pára-se.
Tenho tempo para ver coisas que por detrás de um pára-brisas não me detenho, não ligo, não quero saber. Os ângulos confundem-se, misturam-se, desligam-se da realidade ou a posição de sentado para a do caminhante permitem outras perspectivas sobre a vida.
Tenho novos pensamentos, posso mesmo afirmar que nascem pensamentos diariamente da observação que faço, e este exercicio está a tornar-se tão agradável, que já acontece naturalmente.
Evidentemente, também há um lado negro.
Vejo miséria, muitos sem-abrigo, animais abandonados, casas em derrocada, miúdos a pedir e a drogarem-se.
Mas o mundo é isto. Uma tela de cores suaves e pinceladas de tons fortes para espevitar. Não vale a pena esconder o quadro no sotão só porque não vai bem com o resto da mobilia. Vai continuar sempre a ser um quadro.
 
Tenho saudades de me sentar ao balcão, não é de beber um copo, é de me sentar ao balcão com aquele pessoal, ter o meu bocado comigo mesmo, pensar na vida, contar os botões, ver o que eles me dizem nesse dia: Rei, Capitão, Soldado ou Ladrão?
Tenho sido soldado.
Tenho batido muito terreno, especialmente a pé por questões de economia, e o carro só quando vou para longe é que pego nele.
As grandes medidas da firma continuam. Os objectivos da minha equipa foram conseguidos e até ultrapassados, mas a de outros colegas não tiveram essa sorte e dois estão já com a carta na mão.
Apetecía-me ir ao bar e falar destes dois homens à malta.
Dizer o que conheço deles.
Por uma vez, ser eu a contar uma história que não acaba bem.
E todos a erguermos os copos à sua saúde.
 
Un gin.
Ou dois ou três ou os que forem necessários para esquecer, ou para me apagar por um bom bocado.
Ou então para levar este gosto para casa, para a rua, para vários dias ou até meses, sei lá!
Afogar as mágoas, não é o que dizem?
Antes eu me afogasse todo dentro de um copo, conseguisse fazer-me do tamanho do Oliver e me atirasse para dentro do gin, em directo e em cima do balcão!
Dizem que se bebe para esquecer, mas a cada gole eu lembro mais, provavelmente devería parar, assim talvez esquecesse o inicio do dia...
E a história começa desta maneira: Era uma vez um João que foi chamado ao gabinete do chefe. Ele e os colegas da equipa dele. Que a firma vai mal, que têm que fazer cortes, a ordem vem de cima, se os objectivos não forem alcançados alguém vai ser dispensado no próximo mês, blá, blá, blá, o resto é o olho da rua, e viveram miseravelmente para o resto dos seus dias!
Pronto.
 
Novo ano, esperança renovada. O que lá vai já passou e de mau concerteza não há-de piorar, porque agora mais experiente, creio que não irei cometer os mesmos enganos e a invenção é o engenho dos homens.
Entrei no bar muito bem disposto, animado, desejei um bom Ano a todos, tomei o meu lugar do costume, cumprimentei uma senhora que nunca lá tinha visto, por sinal muito bonita e que alindou o balcão (menina bonita, contei nos botões do meu sobretudo) e pedi o meu gin.
E planos para 2013? Projectos? Há sempre grandes decisões no principio do ano, não é verdade?
A economia está péssima, a taxa de desemprego atingiu uma percentagem altissíma, a lista de espera para uma intervenção cirúrgica nos hospitais estatais é de mais de 2 anos, os pontos de atraso que o clube leva nunca mais vão recuperar, o filho daquele tem quase 30 anos e não há meio de saír de casa dos pais, o outro escolheu um curso que ninguém ouviu falar, coisa caríssima!!!
Fui abalroado.
O momento era sério, resolvi tirar o sorriso e guardá-lo no bolso.
Pois, pois, pois, tinham razão, é verdade, tudo verdade. Mas hoje não podemos esquecer isso tudo e beber um trago a melhores dias? Não disse nada, só pensei, já tinha levado para assar.
A senhora bonita deslizou do seu banco e veio ter comigo. Disse-me que tinha planos para este Ano. Bateu no meu copo e disse que ía ser feliz.
Tchin, tchin!